sexta-feira, 4 de julho de 2014

Todo o Amor do Mundo

Em 11 de agosto de 2011 eu tomei para mim a responsabilidade de dar um lar a um gatinho de rua que estava morrendo.
Ah, mas gato de rua é safo, eles se viram!
Ele foi abandonado na vila da sua antiga casa depois que os moradores se mudaram. Isso é bastante comum. Um gato é esperto, sabe se virar.
Ele dormia na chuva, não tem a maior parte dos dentes, sofre até hoje de coriza, estava cheio de pulgas e os ossos eram visíveis por baixo dos pelos.
Mas ele foi esperto, sobreviveu, miou, pediu comida e se recusou a morrer.
A síndica da vila estava prometendo chamar a SUIPA (como se a SUIPA fosse buscar animais perdidos) e tentou várias vezes expulsá-lo da vila. Até a água da limpeza ela cortou para que ele não tivesse o que beber.
Mas chovia muito e ele se recusava a morrer.

Enquanto isso, eu em meu apartamento fechado, desarrumado, um verdadeiro caos, me recusava a viver. Me recusava a sair com amigos, receber visitas ou fazer alguma coisa que não fosse trabalho. De vez em quando eu tirava os olhos de mim e deixava comida para o gatinho abandonado na vila. Ele ficava tão feliz em me ver - subia no meu colo, espirrava um pouco, olhava para a porta como sempre... SEMPRE! Como se a antiga dona fosse aparecer a qualquer momento.

Depois de comer, se esfregar-se em mim ele sentava no meu colo sem miar, sem se mexer, sem desviar o olhar e sem demonstrar dor ou alegria. De uma forma estranha, Espirro estava em paz.

Não havia quem o chamasse de outra coisa - o bichinho espirrava a todo minuto.

Aí a responsável pela vila jogou tudo o que eu dei para o Espirro fora e ele ficou na chuva de novo.

Foi mais a revolta e a raiva que me fizeram tomar uma atitude. Contatei uma "gateira", procurei alguém que pudesse ficar com ele, mas tive pouca sorte. Ninguém quer um animal adulto e doente. Então, depois de muito relutar decidi eu mesma levar Espirro para o caos do meu apartamento.

Ele lutou tudo o que pode para não abandonar seu posto de esperança. Ele saiu do banho anti-pulgas cheio de espuma, lambeu tudo, só não passou mal porque Deus não quis e aninhou-se na minha poltrona. Parecia muito revoltado. Com o passar dos dias ele ficava sozinho no apartamento enquanto eu ia trabalhar. Eu ficava com pena, mas era melhor do que definhar na chuva.

Depois de meses de comida pastosa especialmente vitaminada, cobertas quentinhas, uma poltrona para usar como afiador de garras, Espirro parecia estar em casa. Grudado em mim a cada minuto eu me tranquilizei. Ele estava feliz.

Anos depois, com a Copa do Mundo, os aluguéis dispararam - até mesmo o de apartamentos mínimos e dominados pelo caos. Eu tentei tudo, mas como Espirro anos atrás, eu perdi o teto.

E ele?

Eu tenho amigos que são verdadeiros anjos quando se trata de animais. Mesmo já tendo dois cachorros eles aceitaram trabalhar em uma adaptação do Espirro em sua casa.

E a coriza? E o trabalho? E o desgaste? E os gastos?

Eles nem discutiram isso. Estão esperando com otimismo a chegada do gatinho.

Mas eu tenho esses anjos como amigos, mas são praticamente os únicos. Eu vou sair do caos do apartamento para o caos de passar alguns dias da semana na casa de um parente e outros dias na casa de outro. Todos me tranquilizam que essa situação vai mudar, vai melhorar, que é só uma etapa. Me ofereceram ajuda. E o melhor de tudo - Espirro vai estar bem cuidado.

Então está tudo certo.

Mas todo o amor que eu não tive como fazer chegar a meus parentes eu derramei no Espirro. Toda a frustração de amores que nunca deram certo eu transformei em amor pelo Espirro. A dor de saber que a idade chegou e que não posso mais ter filhos foi amenizada e abafada em cada carinho no Espirro. Todo o medo que eu também tenho da chuva se transformou em calma perto do Espirro. O caos perdeu o peso e importância no bem-estar do Espirro.Meu mundo era nada e eu não percebi que colocando algo ali, tão perto, meu mundo iria ter uma forma e vida.

Ele vai ser muito bem cuidado e eu vou visitar com frequência. A promessa que me foi feita é que assim que eu tiver um outro teto - esse vai ser dividido com um parente para ser um pouco mais sólido - Espirro vai voltar para mim. Com todas as reservas que minha irmã possa ter ela me prometeu que ele voltará.

Então está tudo certo.

Ele vai para um bom lar, vai se adaptar e eu passarei meses mais distante dele que os novos tutores. E todo o amor que eu juntei naquela criaturinha vai fazer parte de um novo lar - um bom lar. Um lar seguro e alegre.

Eu não abandonei Espirro na chuva - eu cuidei de seu bem estar.

E agora somos só nós: o caos e eu...

... e uma  dor sem tamanho, sem fim, sem misericórdia.

No meio das comemorações de Copa do Mundo eu me desfaço do meu lar, do meu caos e de todo o amor que eu consegui dar.

Dentro de mim chove e faz frio. Eu tenho fome, estou doente e com o sangue fino. Nestes próximos meses vou olhar para o portão onde Espirro vai passar e manterei meus olhos ali, com esperança, sem dar ouvidos a todos que dizem que meu tempo com Espirro chegou a um fim. Eu entendo agora o olhar dele para o portão.