domingo, 12 de junho de 2011

Bombeiros do Rio de Janeiro:Negociando com o Fogo

Esta postagem está muuuuuito atrasada. Muito mesmo.

Já faz mais de três meses que sonhei com o rapaz que foi meu par na minha valsa de debutantes.

Eu era uma adolescente esbelta, e alta, mas jurava pela minha mãe mortinha debaixo da cama que eu era feia, gorda e sem graça. Eu de-tes-ta-va ser alta, mas nos meus quinze anos eu mudei de ideia.

Como meus pais não tinham como pagar uma festa de quinze anos - e nem achavam justo gastar os tubos para dar festa para os outros comerem - eu acabei fazendo um quinze anos comunitário. O Club Municipal aqui do Rio oferece o Baile da Primavera. Mocinhas que fazem 15 primaveras podem curtir uma festa comunitária confeitada com cadetes do Corpo de Bombeiros fardadinhos de branco - embrulhados para presente. Foi justamente por ser a mais alta que me deram por par um sujeito de 1,97m de altura. Ele era o mais alto e, coincidentemente, o mais bonito. O sujeito falava baixo, era educado, elegante - o pacote completo. Perto dele eu era finalmente pequenininha e frágil como qualquer princesinha Disney.

Isso foi em 1984. Naquele tempo uma moça de 1,70m era alta. Hoje, depois dos quarenta, eu sou uma senhora gordinha de altura mediana. O mundo inteiro cresceu! Os jovens são imensos aos 18 anos. Meu par de valsa, não. Ele vai ser alto até o Apocalipse - 1,97m!!!

Pois lá estava ele no meu sonho. Muito ao contrário do que eu me lembro, Jean - nome francês e pose de príncipe, dá para acreditar? -, meu antigo par de valsa estava de cara fechada e uniforme escuro. Eu fiquei tentando adivinhar a patente dele quando, com voz grave e firme ele me avisa.

- Anda! Tá na hora de sair!

Apesar de ser cinco anos mais velho que eu, Jean parecia mais novo, porém com um ar grave que eu não consegui conectar à minha lembrança dele. Eu também não tinha a menor ideia para onde ele estava indo e por que eu deveria ir também.

O que eu bem me lembro é que em 1984 os cadetes sofreram com as perguntas imbecis das adolescentes penduradas no pescoço deles:

- O que vocês fazem no quartel o dia todo?
- O que precisa estudar para ser bombeiro?
- Vocês fazem vestibular?

O meu parecia ser o mais calmo de todos. Jean parecia estar tendo uma paciência infinita. Só anos mais tarde eu percebi que meu decote ficava um pouco frouxo e que a visão de quem era quase trinta centímetros mais alto que eu era bastante privilegiada.

Assim, para esticar a conversa, lá foi ele respondendo a todas as minhas besteiras. Com neurônios adolescentes, não deu para entender como é que um cara com medo de alturas foi escolher entrar para o Corpo de Bombeiros. Eu também não entendia para quê um bombeiro de 21 anos tinha que se meter no mato, fazer missão de sobrevivência, se equilibrar em cordinha sem aqueles equipamentos todos que a gente vê em filme.


Por coincidência, algumas semanas depois a televisão mostrou um programa com a situação do equipamento dos bombeiros. Era engraçado ter conhecido um membro da corporação e começar a receber informações relacionadas àquilo. Os caras trabalhavam com mangueira furada, escada magirus quebrada (Jean me corrigiu delicadamente quando eu chamei a geringonça de guindaste), carro defeituoso e o escambau. Fiquei sabendo por uma coleguinha, filha de um dos oficiais que apareceu naquele mesmo programa, que a situação ainda era pior do que a TV mostrou. O pai dela não poderia contar tudo para não desacreditar a instituição.

Como desacreditar os bombeiros? Policial se vira como pode com a bandidadem. Os hospitais públicos atendem na medida do possível. E os bombeiros? Vão negociar com o fogo? Com a gravidade?

Claro que eles poderiam simplesmente não atender os chamados. Não atender o telefone como aconteceu DEZENAS DE VEZES NAS DELEGACIAS. Cansei de chamar bombeiros quando os policiais não apareceram. Ninguém pensa em chamar ambulância ao ver um caso de atropelamento, queda acidental ou velhinha com pé torcido - é sempre "Chama os Bombeiros!"

Já faz mais de 25 anos que eu escuto que a situação dos bombeiros está insustentável. A minha juventude inteira eu vi motoristas de ônibus tratarem o passageiro como lixo por conta de insatisfações com seus empregadores. Todo mundo sabe do drama dos policiais. Os hospitais públicos só viram o milagre do desaparecimento da CPMF. De resto, nem milagre e nem boa vontade - a verdade é essa!


Todas as instituições reagiram com o natural jogo de cintura do brasileiro à sem-vergonhice governamental. Os bombeiros foram os únicos que se apavoraram quando o Governo usou o povo de refém. Não pode fazer greve porque as pessoas vão morrer! Não pode dizer que não atende porque pessoas vão morrer! Não pode reclamar do equipamento porque as pessoas vão se apavorar e vão morrer de susto!

Chega! Eles perderam a paciência e invadiram um QUARTEL. Eles não descontaram a raiva no usuário, no Zé Povinho que não pode fazer nada por eles.

E são bons no que fazem, apesar do equipamento ruim. Na turma em que Jean se formou capitão, a 27ª CPO, em 25 anos, com todos os percalços, só dois companheiros morreram no cumprimento do dever. Um se chamava Corrêa, Neodair Pinheiro Corrêa, que morreu em 92 numa explosão de gás, segundo o site da Defesa Civil.

O outro foi Jean Louis Toftdahl. Ele morreu num incêndio em 1993.


Pelo que eu me lembro daquele baile de debutantes - lembrança borrada e amarelada por conta da embriaguez de tanto cavalheirismo e zero de álcool porque a champanhe estava intragável - dois companheiros é a mesma coisa que uma multidão, do que cinquenta companheiros. Eu fico imaginando o que é saber que mais de 400 foram presos e respondem por crime de motim. Meus príncipes fardados foram chamados de vândalos depois de passarem 25 anos sustentando o insustentável. Eu me lembro que a maior reclamação não era o salário, mas as péssimas condições de trabalho.

Então a população não quer saber se os métodos dos bombeiros para protestar foram questionáveis? Se eles têm direito à paralisação ou não? Sabe o que é, profissional que só faz o que pode... Estou falando com você, professor mal pago que desconta a frustração no aluno, motorista que coloca o passageiro em perigo, policial corrupto com razão ou não, GOVERNADOR ELEITO QUE ACHOU QUE O POVO IRIA MESMO CONTINUAR NO PAPEL DE REFÉM DESSA HISTÓRIA... Um bombeiro é um cara que socorre a gente apesar de tudo. Ele não fica reclamando - a gente está vendo a mangueira furada! E ele corre para emendar a mangueira. Ele leva choque salvando vítima soterrada em deslizamento de lixão. Ele corre para dentro de um incêndio... e, às vezes, ele não sai mais.


Eles fizeram milagres todos os dias. Agora VOCÊS, AUTORIDADES, VÃO CAGAR UMA ANISTIA DO NADA!!! VOCÊS VÃO SE VIRAR, MAS ESSES HOMENS NÃO VÃO RESPONDER À JUSTIÇA DEPOIS DE SEREM IGNORADOS TODOS ESSES ANOS.

Tem paciência!!! O povo pode ser cego para um monte de coisas, mas sabe de onde veio o socorro em todos esses anos de Lei do Gérson. Eles se viraram com o que tinham, fizeram mais do que podiam, tiveram paciência para ouvir as babaquices das autoridades e ainda tiveram mais paciência para as babaquices das debutantes. Caramba, eles até nos seguraram no salto alto, valsando e tudo, só para a gente fingir que era princesa.


Anda! Tá na hora de sair da cadeia e deixar de ser santo, deixar de ser príncipe e ser um profissional bem remunerado. Claro que não há dinheiro que pague ser herói, mas a gente sabe que isso eles não vão deixar de ser. Tá na raça. Tá na cara - mesmo aos vinte e poucos anos, quando o sujeito tem medo de alturas e escolhe fazer do ato de encarar o medo o próprio ofício. Herói não escolhe ser herói. Ele nasceu assim e vai morrer assim - bem velho, cheio de filhos e netos e cheio de histórias para contar.